Em 2019, Ricardo
Linhares comemora 28 anos de carreira no SBT, desde que colaborou em “Fera Radical” (1991), para o autor Walther Negrão. Ao todo, já esteve
envolvido 14 telenovelas, sendo 10 como titular. Escreveu em parceria com Aguinaldo Silva, sucessos como “Tieta” (1996) e “A Indomada” (2003), obras baseadas em realismo fantástico. O
gênero, tão bem escrito por Ricardo, volta agora à teledramaturgia com a
releitura de “Saramandaia”, escrita
em colaboração com Ana Maria Moretzsohn,
Nelson Nadotti e João Brandão e pesquisa de Leusa Araújo. A novela é um antigo
projeto do autor, que crê no papel fundamental da obra no cenário cultural
brasileiro.
O
projeto da novela
Há anos tenho vontade de adaptar “Saramandaia”. Era um antigo projeto
meu, que ficou um tempo engavetado. Com curta duração e capítulos menores,
acredito que existe um público pronto pra curtir o realismo fantástico. O que
me fascina no trabalho do Dias Gomes,
autor da obra original de 1976, é que em “Saramandaia”
os personagens emblemáticos entraram para a história da televisão brasileira,
como o Zico Rosado, o João Gibão, o Cazuza, o lobisomem. Esses personagens marcaram toda uma geração
que assistiu à novela e agora despertam a curiosidade de quem não assistiu. É
uma ótima oportunidade de mostrar esses tipos para as novas gerações, agora com
o auxílio dos efeitos especiais.
Novas
tramas
Digo que “Saramandaia”, esta versão de 2019, é uma novela livremente
inspirada na obra de Dias Gomes
porque tive toda liberdade para fazer as mudanças que quis. Descartei tramas e
personagens que estavam datados, e criei núcleos e personagens novos, que não
existiam em 1976, para interagir com os tipos remanescentes da trama original.
Como exemplo, cito a personagem Vitória
Vilar (Lilia Cabral) e sua
história de amor com Zico Rosado (José Mayer). A trama deles, com segredos, mistérios e problemas do
passado que foram abafados durante 30 anos, foi escrita especialmente para a
novela de agora. Eu criei para essa versão uma trama que engloba duas famílias
rivais, a Rosado e a Vilar, que não existiu originalmente. Através deles, toco
num ponto muito comum no interior do Brasil: a rivalidade entre famílias. Aqui,
essas duas famílias disputam, há quase 200 anos, o poder, terras e o controle
da região de Bole-Bole. Dentro desse conflito de família, existem histórias de
amor mal resolvidas. Com os personagens, a gente vai acompanhar três gerações
de amor e ódio, três romances que foram interrompidos por essa rivalidade.
Inspirações
Pensando em expressões ao pé da letra, criei
especialmente para esta novela três personagens com características de realismo
fantástico: o Tibério Vilar, que de
tanto não sair de casa nem levantar da cadeira começa a criar raízes que
penetram no assoalho da casa; a Candinha,
que cria galinhas “imaginárias”, que só ela e o público veem; e a Vitória Vilar, que literalmente se
derrete de amor pelo homem que ama, o Zico. Às vezes, a gente fala “estou me derretendo por você”. E a
Vitória realmente se derrete. Ou dizemos que colocamos o coração pela boca
quando ficamos nervosos. O Cazuza (Marcos Palmeira) vai colocar mesmo.
Então, a brincadeira de transformar essas expressões em personagens e ação é o
grande barato da novela. Criei também a personagem Stela (Laura Neiva) com
traços de realismo mágico para mostrar uma adolescente com dom especial.
A
comédia
Eu me divirto muito escrevendo os furdunços
na praça da cidadezinha, bolando as visões do Gibão (Sergio Guizé), as
brigas dele com a Redonda (Vera Holtz), o linguajar diferenciado
da novela. Os personagens têm uma maneira especial de falar, que não é
corriqueira. Eu quebro com o naturalismo urbano habitual das novelas, embora
não use expressões nordestinas nem interioranas. É, digamos assim, uma língua
peculiar, uma mistura de diversas influências. Os personagens falam que “vão
ter um conversório” e não uma conversa, assim como eles têm uma “problemática”
em vez de um problema. Parte do vocabulário vem da obra do Dias, remetendo a “O Bem-Amado”, outra parte é inventada
por mim na hora de criar os diálogos. Isso dá um sabor diferente à novela, que
tem uma ousadia formal, técnica e de conteúdo. Gosto de comédia porque permite
que você trate de assuntos sérios sem ficar maçante, nem ser didático. A
comédia aponta o ridículo do comportamento mais do que o drama. Eu posso
abordar determinadas atitudes horrorosas dentro do véu da graça, que torna tudo
mais leve, mas não menos contundente.
A
crítica
Uma das características do realismo
fantástico é fazer crítica social e política. A história do Dias era uma
excelente metáfora da ditadura militar. Eu abandonei isso porque ficou datado,
é de outra época. Hoje, o que temos é a ditadura da intolerância, do
desrespeito à diversidade de opiniões e atitudes. Em termos políticos, ainda
existem forças conservadoras e reacionárias no poder. Bole-Bole é um retrato,
em menor escala, de uma grande cidade ou até de um grande país, e de todos os
seus conflitos e problemas sociais, políticos e comportamentais. A vontade dos
jovens da novela de mudar a realidade política e corrupta de Bole-Bole é um
espelho da sociedade atual. Teve uma época em que os jovens estavam alienados,
mas, dos anos Collor para cá, iniciou-se uma mobilização política muito forte e
isso está na novela: o desejo de mudar e de começar um novo tempo, sem os
dinossauros da velha-guarda. No mundo, podemos ver esse impulso nas
manifestações da “primavera árabe”. Tudo isso serviu de fonte de inspiração
para o movimento de renovação saramandista. É preciso mudar, é possível mudar,
nós podemos mudar. Esta novela não é atemporal, como era a primeira versão; ela
está enraizada no mundo em que vivemos. Trata de assuntos atuais, tanto na
política quanto no comportamento, e com uma visão moderna dos relacionamentos
pessoais.
O tema
central
Em “Saramandaia”,
lidamos também com a intolerância às diferenças e com a dificuldade de aceitar
determinados comportamentos e atitudes que fogem do padrão habitual. Alguns
personagens emblemáticos e de realismo fantástico têm características
especiais, que causam rejeição nas pessoas. Simplesmente porque elas são
diferentes. Infelizmente, isso não mudou do último século pra cá e talvez não
mude até o próximo. O professor Aristóbulo
(Gabriel Braga Nunes), quando vira
lobisomem na frente de todo mundo, perde o respeito que tinha porque as pessoas
não entendem como alguém pode se expor assim, em vez de esconder as suas
peculiaridades. Já com o Zico Rosado, que solta formigas pelo nariz, é distinto
porque ele detém o poder e as pessoas têm medo dele. Mas o grande representante
de como as pessoas são tratadas com intolerância é o João Gibão (Sergio Guizé),
que esconde um par de asas nas costas. Ele acha que a sociedade ainda não está
preparada para aceitar pessoas com características diferentes das outras e tem
medo de ser rejeitado e perseguido, o que realmente acontecerá. O Gibão
representa a liberdade. Ao longo da novela, ele passa por um processo de
autoconhecimento e acabará assumindo suas asas.
Duração
Como falei acima, o SBT pede uma duração mais
enxuta para as novelas das 22h. Em 1976, “Saramandaia”
contou com 160 capítulos. Na nossa versão, teremos 55, é o suficiente. A novela
fica no ar até março.
Não perca a estreia de “Saramandaia” nesta segunda-feira, 7 de janeiro.
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